lunes, 25 de julio de 2022

LIONEL

 

                                                   LIONEL

 

Me chamo Lionel Davis, minha infância acabou no dia que minha mãe morreu, ou foi assassinada, ou como acreditei durante todos esses anos, que tinha fugido com tio Bill.

Durante todos esses anos, estive com minha mente bloqueada por uma série de manobras do meu pai, afinal nem sei se é ou não, me fez acreditar que minha mãe tinha fugido com tio Bill, seu sócio no consultório de psiquiatria que os dois tinham.

Eu adorava o tio Bill, era como um companheiro para mim, ao contrário de meu pai, era uma pessoa divertida, já meu pai, uma pessoa que parecia todo o tempo que estivesse brigando com o mundo.   Não me lembro se alguma vez me abraçou ou fez um carinho.

Eu tinha uns 9 anos quando tudo aconteceu, até então, quando os dois começavam a discutir, ele me mandava para meu quarto, mas eu me sentava no alto da escada, ficava escutando, só ele falava.  Sempre reclamava de tudo, nunca nada estava bom.

Seu prazer era humilhar minha mãe, que ele não servia para nada, claro o único que salvava era que era imensamente rica, o que acabava atirando na cara dele, dizendo que se não fosse ela, ele estaria na merda.

Ao contrário do que muitos pensariam, era uma loira sim, mas de burra não tinha nada.  Foi o que salvou a mim bem como seu patrimônio.

Quando foi dada como desaparecida, ele se esbarrou que não podia tocar no dinheiro dela, bem como em suas propriedades.   Tinha também um testamento, que havia que esperar que eu tivesse 18 anos.

Nunca a encontraram, mas tampouco uso de cartões de créditos, dos dois.  Nunca houve rastros.

Na casa de Tio Bill, foi a mesma coisa, nada fora do lugar, só seu carro tinha desaparecido.

Quando soube disso, meu avô materno, conseguiu minha guarda, mas claro, era velho demais para criar um garoto.  Me meteu num colégio interno, meu pai nunca vinha me visitar, a única pessoa que aparecia no meu aniversário, natal, era uma irmã dele, com quem não se dava, quando ela morreu, deixou de aparecer qualquer pessoa.

Só sai desse internato, quando estive para ir a universidade, não sabia muito bem o que fazer com minha vida, era bom aluno em tudo, conversava com meu tutor, mas apesar de gostar de muitas coisas, não sabia bem o que queria.

Um dia tudo estourou, muito cerca de aonde vivíamos, existia um rio, tínhamos ido muitas vezes fazer pick nick numa lugar que tinha praia, logo em seguida, diziam que a profundidade do rio era espantosa.

Mas começaram a construir uma barragem elétrica, desviaram o curso do rio, quando as aguas abaixaram, encontraram o carro do tio Bill, com os dois dentro, só que cada um tinha uma bala na cabeça.   As balas pertenciam a uma arma de meu pai.  Ele fugiu assim que soube que tinham encontrado o carro, mas claro, foi com uma amante, ela o denunciou a polícia, porque em seguida se tornou violento com ela.

Me liberaram da escola, pois tinha terminado o curso antes do tempo.  O advogado que levava as coisas de minha mãe, me acolheu eu sua casa.  Fui com ele ao julgamento.

O homem que pensava que era meu pai, esta ali sentando, olhando para a superfície da mesa, sem levantar a cabeça.

Quando foi interrogado se veio abaixo.   Ele e tio Bill, tinham sido amigos desde criança, estudaram a vida inteira juntos, na faculdade os dois se apaixonaram pela minha mãe, ela era de família rica, meu pai, vinha de uma família de classe média, tio Bill era o único que tinha estudado sempre com bolsas de estudo, pois sua família tinha se arruinado a muito tempo. Do outro lado nas cadeiras, vi seus pais, nunca os tinha visto, não eram tão velhos como tinha pensado.

Dias antes, tinham me retirado sangue para fazer um exame de ADN, que usariam no julgamento.  No interrogatório, seu advogado o colocou como uma pessoa sofrida, enganado pela mulher, pelo seu melhor amigo, durante anos.

Quando o fiscal começou a interrogar antes deles, uma série de amantes que ele tinha tido, logo vimos que ele era propenso a violência, todas diziam que na cama era um banana.  O pior foi quando apareceram dois homens, com uma pinta horrorosa, se viam que tinham as sobrancelhas perfiladas, usavam unhas grandes, cabelos grandes, quando se identificaram, foram perguntados pelo fiscal, os dois eram travestis, tinham sido amantes dele.  Disseram que ele gostava que o pegassem pelos seus pecados, mas no final apareceu o pior, um que vinha vestido de mulher, pois andava assim, disse que ele tinha sido agressivo, quando ele resolveu se transformar em mulher, tinha um apartamento que tinha colocado em seu nome, que tinha vendido o mesmo, para fazer a operação, quase me matou de pancada, fiz uma denuncia é claro, mas ninguém me deu atenção.   Me dizia sempre que o filho não era dele.

Depois do primeiro dia, conversei com o advogado de minha mãe, que me fez me sentar com o fiscal, contei tudo que me lembrava, das eternas discussões dos dois, que ele tentava humilhar minha mãe, ela lhe jogando na cara que ele só a queria pelo seu dinheiro.

Inclusive era proprietária do prédio aonde tinham a consulta.  Que quem me tratava bem era o Tio Bill, era o único que demonstrava me querer.  Quando vinha jantar, me colocava na cama, me contava histórias, me dava um beijo na testa.

No dia que tudo aconteceu, vi que ele pegava minha mãe, depois saíram os dois, no dia seguinte me disse que os dois tinham fugido.

Nesses anos todos, nunca tinha me visitado, eu sentia falta sim do tio Bill, dele nenhuma, nunca tinha feito um carinho, nada.

Só te chamaremos para depor de for necessário, não tens que passar por isso.

Sabiam que ele estava sem dinheiro, que a casa estava empenhada, bem como o edifício do consultório, ninguém sabia como tinha conseguido o dinheiro.

Finalmente o fiscal o chamou para depor, foi um horror, depois das amantes, dos travestis, ele estava um frangalho de pessoa.  Primeiro contou uma porção de mentiras, que tinha me protegido desses dois, que eram amantes desde o tempo da universidade.

O fiscal lhe perguntou se tinha certeza de que era seu filho?

Disse que sim, que ia sempre me visitar no colégio, que nunca tinha me faltado nada.

O advogado teve que me segurar na cadeira, pois eu queria gritar que era mentira.

Quando o fiscal soltou, que pelas provas de ADN, eu não era filho dele, mas sim do Bill, ele ficou furioso, perdeu os papeis, como se dizia, até isso eles me roubaram.

Tinha se casado com minha mãe, durante um período que Bill estava no exército, tinha sido dado como desaparecido, ela estava grávida, isso atestava um documento que estava em poder do advogado.   Meu avô materno, era um judeu muito rico, a tinha obrigado a se casar com separações de bens, ou seja ele não tinha direito a nada.   Por isso nunca tinha podido aceder ao que ela tinha.

Uma miserável seguiu falando, uma loira puta como todas as outras putas que apareceram aqui.

Todas mereciam morrer, lástima que só matei essa puta que era minha mulher.

Não houve como o fazer parar, ele disse que a tinha feito ir a casa do Bill, que tinha feito os dois entraram no carro, tinha dado um tiro na cabeça de cada um, jogado o carro no rio na parte mais profunda.    Olhou em minha direção, nesse momento me livrei desse bastardo, apontou para mim.

O que ele não esperava era que eu ficasse em pé, lhe grita-se assassino, me roubaste o que mais gostava na vida, meu querido tio Bill, bem como minha mãe, que vá para o inferno.

Ele abaixou a cabeça, nesse momento se fez uma grande confusão.  O juiz interrompeu o julgamento, mandou que me levassem ao seu gabinete, fui como fiscal, com os dois advogados. Contei tudo que sabia, que era mentira, que ele nunca tinha ido me visitar, que tinha passado todos esses anos preso na escola, nunca saindo para nada.

Virei para o juiz, perguntei se podia me considerar como maior, para me livrar dele.

Isso será outro processo, mas não vejo por que não.  Terás que seguir em frente.

Eu confessei que tinha pensado que realmente tinham fugido, porque os dois sempre se mostraram carinhosos um com o outro na minha frente.   Bill sempre segurava sua mão na hora de ir embora, lhe dava um beijo.

Quando sai, me apresentaram os meus avôs, os pais do Bill, me abraçaram com lagrimas nos olhos.  Eram pessoas simples, se quiseres vir viver conosco, será um prazer.

Ele era a viva imagem do Bill, que agora sabia que era meu pai. Me agarrei a ele, chorei muito.

Depois nessa noite jantaram na casa do advogado, enquanto eu não fosse independente, não podiam fazer nada.   Contei como o Bill se comportava comigo, as histórias que me contava, como me colocava na cama, o beijo que me dava na testa, esse outro, nunca se aproximou de mim.

Como dizia o advogado, era tudo como se fosse uma novela de mau gosto, tudo porque ele queria se casar com ela, pensando que seria rico.

No último dia do julgamento, seu advogado nem sabia o que dizer, porque já tinha perdido a causa.  Ele foi condenado a cadeia perpétua, sem direito a pedir liberdade.

Não fez nenhum movimento, tinha envelhecido uns 20 anos de um dia para o outro, ombros curvados, seguia olhando o tampo da mesa, passou por mim na saída, eu lhe virei as costas.

Tinha matado meu pai, minha mãe.

Dois dias depois, o juiz assinou minha independência, o advogado com um tabelião levaram na frente dele, o testamento dela, havia uma carta para mim, que coloquei no bolso, existiam muitas propriedades, que vinham do meu avô, inclusive seu imenso apartamento em Chelsea em NYC, além de dinheiro no banco, do parte de meu avô havia uma caixa forte que também me pertencia, que eu só tinha direito a abrir quando fizesse 18 anos, eu calculava com o dinheiro que receberia, teria dinheiro por muitos anos.

Nos dias seguintes, tiramos documentos de identidade, eu assumiria o sobrenome de minha mãe, me passava a chamar Lionel Stainer, não queria levar o dele de maneira nenhuma.

Deixei passar pelo menos duas semanas, falava todos os dias com meus avôs, eles viviam em Filadélfia, eu lhes disse que logo iria visita-los.

Só então, tive coragem de ler a carta.  Quando fores maior de idade, saberás que foste fruto de um amor muito grande.   Eu me apaixonei pelo Bill, logo que o vi, mas claro incluía seu amigo que sempre estava junto.    Quando Bill foi chamado para ir para o Vietnam, não houve maneira de escapar, meu marido sim, conseguiu.  Mal Bill embarcou, descobri que estava gravida, fiquei quieta, mas ele descobriu.  Nem um mês depois Bill foi declarado desaparecido em combate, ele me convenceu a me casar com ele, para que tivesses um sobrenome, que não te chamassem de bastardo.   Ele sabia o que era isso, pois não era filho do homem do qual levava o nome, o que descobri depois que era uma maneira de me enganar, não era verdade.

Anos depois quando recuperaram o Bill, ele quando voltou era um trapo de homem, tinha sido prisioneiro durante anos, era um cadáver ambulante, mas quando te viu, sorriu, disse que tu eras igual a ele quando criança.  Começou então um largo tratamento, que nunca soube quando ia acabar.   Pois seus traumas eram muito grande, pensei em pedir divórcio para cuidar dele, me disse que infelizmente já não tinha capacidade de amar mais, tinha perdido tudo.  Que a única coisa boa era te ver.

Por isso quando vem aqui em casa, gosta de ficar brincando contigo, contar histórias, te colocar na cama.   Mas fora isso, sua casa, é pequena, vive num quarto, que mais parece uma cela de um monge, não suporta muita gente junta, lhe dá medo.

Me diz sempre que bem ou mal, ele tem um pai que o criou.  Por mais que lhe explique que ele nunca se aproxima de ti, que te engole, porque senão não tem a vida que pediu a deus, com nosso dinheiro.

Agora Bill, esta melhor, tomei coragem, vou pedir o divórcio, não quero mais viver essa mentira, quero ter uma família com o Bill, ele nos ameaça de acabar conosco, te deixar sem pais, já falei com o advogado, ele nunca poderá se nos acontece algo, tocar no dinheiro que será para o teu futuro.

Teu avô meu pai, leva muito mal esse assunto, pois nunca gostou dele, tampouco gosta do Bill, diz que tem problemas demais com o que lhe aconteceu na guerra.

É uma verdade, poderia ser um homem violento, mas se transformou num homem frágil, está dividido, tem medo de causar problemas para ti.   Te ama muito, mas seu medo de não controlar sua neurose é muito grande.

Não importa, eu te amo demais meu filho, foste filho desse amor imenso que sinto por ele.

Beijos, tua mãe.

Ela sempre me dizia como te pareces ao teu pai, eu olhava o outro, não consigo mencionar seu nome, nunca me pareci com ele.

Sou loiro como ela, como o Bill, tenho os olhos dos dois, azuis, sou tão alto como ele era.

Fui visitar meus avôs, agora podia me mover sozinho, já tinha posse de meu dinheiro, aluguei um pequeno apartamento, não queria viver no que tinha sido do meu avô, que era imenso, imagina tinha vivido sempre num quarto normal no colégio, os quartos ali eram imensos.

Agora entendia o Bill, ele devia viver numa cela, porque sabia que não precisava mais do que tinha.

A casa dos meus avôs era muito simples, no quarto dele, estava igual segundo ela, nunca mudei nada, ali estavam seus troféus, de estudante, a maioria não eram de esporte, mas sim de debates que participava, era muito inteligente.

O velho me disse, que quando voltou, era assustador, ela pele e osso, nem sabiam como podia se manter em pé.  Levou anos para poder comer direito, se comia demais vomitava.

Tinha pesadelos horrorosos, pois dizia que o acordavam de noite para tortura-lo, durante o tempo que este aqui, passou a dormir num quarto em cima da garagem, mas podíamos escutar seus gritos de madrugada, me levaram até lá. Era um quarto pequeno, com uma cama simples, alguns livros em cima da mesa de cabeceira, um livro grande em cima da mesa que usava para estudar, embaixo da janela, tinha um livro sobre como criar um filho.

Disse aos meus avôs que dormiria ali esses dias, queria estar perto dele, se podia sentir seu cheiro.   Ela chorou muito, me contou que quando me viu a primeira vez, chegou aqui chorando, que nunca tinha pensado em ter um filho tão bonito.   Lhe perguntei se te ia reclamar, ele disse não posso, como vou cuidar de um filho se não consigo cuidar de mim mesmo, dos meus pesadelos.

Me deixaram ali sozinho, abri o livro, era um desses que falam das crianças desde que nasce, a margem estava escrito, não estive presente quando tudo isso aconteceu, como posso recuperar.

Depois haviam folhas soltar, eram pensamentos dele, de como podia fazer que eu o amasse.

Será que um dia me aceitará como pai.

Em outras paginas soltas, estava o que eu tinha conversado com ele nesse dia, como era minha risada, como o tinha feito feliz, ao deixar que me colocasse na cama, que lhe tinha falado que gostava demais disso.

Nessa noite sonhei com ele, sorria para mim, estava feliz.

Passei muito tempo com os velhos, eram gente simples, se espantavam como eu podia gostar de estar ali, contei como era minha vida no colégio, como era meu quarto, que como Bill, eu gostava de ler, que basicamente tinha lido todos os livros da biblioteca.

Que me dava muito bem com o cozinheiro, bem como o que era meu orientador, para o resto eu era o aluno perfeito, que absorvia todas as matérias.

Poderia inclusive me candidatar a uma bolsa de estudos na universidade, estava adiantado.

Mas confessei que não sabia o que fazer ainda, precisava de tempo para pensar.

Quem me deu de uma certa maneira uma solução, foi meu avô, me contou que Bill, tinha um sonho desde jovem, de ir pelo mundo, aprender coisas, seu sonho na verdade era a arte, mostrou dois desenhos dele, tem uma caixa, cheia de desenhos de ti.

Quando abri a caixa, ali estavam um estojo de aquarela, bem como cadernos de pintura, todas as páginas, tinha meu rosto, rindo, chorando, pedindo alguma coisa, as vezes tinha uma anotação, perdi tudo isso.   Muitas fotos minhas.

Fiquei com os pequenos pinceis, bem como o estojo de aquarela, me deram os cadernos, que levei comigo.

Me despedi deles, disse que ia realizar o sonho do Bill, antes de ir à universidade, tiraria um ano sabático, para conhecer os lugares que ele gostaria de ter ido.

Falei com o advogado, fomos ao banco, me deram um cartão de credito de estudante, assim eu poderia ir me movendo.

Tinha encontrado nessa caixa, uma série de guias turísticos velhos, os ordenei por época que tinha comprado, quais eram os seus interesses, tinha inclusive pequenos papeis que dizia o que queria conhecer.

Comecei por Berlin, comprei um bilhete de avião, me informei bem numa agência, a vendedora que me atendeu, me falou do tipo de hotéis que os jovens como eu faziam, eram hotéis dedicados a estudantes, como eu poderia ir me movendo, viajando de trem, sem pressa.

Assim fiz, visitei os museus, as pessoas riam, pois os guias turísticos eram velhos, mas não me importei, segui o que estava ali, se descobria alguma coisa nova tudo bem.

Comecei a formar na minha cabeça, a ideia de arte, tinha estudado história da arte na escola, mas claro eram informações sem muita profundidade, o que fiz foi comprar umas cadernetas Moleskine, anotava tudo que via, analisava o mesmo, quando chegava no hotel, existiam habitações compartidas, mas sempre pedia uma para mim em solitário, gostava do meu espaço, não queria compartir, durante o café da manhã, escutava o que iriam fazer durante o dia, mas quando chegava a noite que começavam a beber, a pensar em festa, eu sequer tinha curiosidade, não queria me perder, antes de realizar meus sonhos.

Me sentava no silêncio do quarto, escrevia minhas impressões das coisas que tinha visto durante o dia, alguma coisa que gostaria de ter falado com o Bill. Comparava sua anotações com o que tinha visto.

De Berlin, fui a Praga, foi uma viagem de trem fantástica, de lá fui para a Itália, fui conhecendo todos os lugares que ele pensava.  Ria as vezes sozinho, pois me lembrava de suas anotações.

Via os outros da minha idade em grupo, mas não me interessava, falava com eles, mas o que queria era ir ao meu ritmo, alguns bebiam demais, depois vomitavam, eu pensava que absurdo, depois quando falavam criticavam a maneira das pessoas viverem, pois não tinha nada a ver com América, então achavam um absurdo.   Pensavam esses quando voltem, jamais se lembraram do que viram.

Tiravam sim muitas fotos, pensei em comprar uma câmera mas preferia, fazer pequenos desenhos nos meus cadernos Moleskine, escrevia todas as conversas idiotas que escutava, para depois pensar a respeito.

Quando cheguei a Roma, fui obrigado a ficar num hotel maior, mas nada de luxo, escutava os turistas falando, pensava, os da minha idade serão estes amanhã, que se fixam em detalhes idiotas, sem olhar como vivem, como pensam os daqui.   Eu preferia conversar com as pessoas nos bares, restaurantes, os que não eram turísticos, para entender como levavam a vida, como pensavam.

Fui até o sul, ao final da bota, como dizem que forma Itália, voltei pelo litoral, era pleno verão todos iam a praia, não era meu campo de batalha, gostava de praias vazias, aonde pudesse estar sozinho, acabei entrando na França pelo sul. Fui conhecendo tudo que Bill tinha sonhado, agora era meu sonho, me divertia, comecei a conhecer gente, falava bem o francês, pois meus professores tinham sido bons, bem como amava a maneira deles cozinharem.

Todas as semanas falava com meus avôs, queria saber como estavam, falava do que tinha visto, dos sonhos de meu pai, agora conseguia chamar Bill de meu pai.

Meu avô falou que o psicólogo com o qual fazia terapia, tinham um diário que ele tinha deixado para o outro ler, tinha demorado a encontra-los, mas estava lá para mim quando quisesse.

Quando cheguei a Paris, era aonde tinha mais anotações do Bill, estava ali tudo que ele tinha sonhado conhecer, fiz isso primeiro, depois fui visitando os museus, parei numa loja para comprar mais Moleskine, escutei a conversa de dois jovens, eram estudantes de belas artes, fiquei curioso, perguntei aonde era, foram me mostrar, se fizeram de guias pela escola, até que um professor perguntou o que eu fazia ali.   Lhe expliquei que era Americano, que ainda não tinha me decidido, mostrei o Moleskine, aonde tinha desenhado várias coisas que tinham me chamado a atenção durante a viagem, claro era tudo em tamanho pequeno, buscou na sua sala uma lupa, disse que era incrível o que eu fazia em tamanho pequeno, que eram excelentes meus esboços.  Podia me apresentar para o semestre seguinte.

Fiquei feliz, quando falei com meu avô, ele me disse que minha avô não estava bem a tempos, que estava num hospital, que o tratamento era caro.  Desliguei falei imediatamente com o advogado, iria para lá, mas que a transferissem para um bom hospital, que tivesse do melhor.

Minha bagagem era pequena, tinha sim muitos Moleskines, tinha sempre viajado com o justo.

Tomei o primeiro voo, pela primeira vez viajei em primeira classe, pois era aonde tinha lugar.

Cheguei de madrugada em NYC, fui direto para Filadélfia, ela agora estava no melhor hospital da cidade, num quarto particular, ele estava com ela, segurava sua mão amorosamente.

Me abracei a ele, que chorava, ela estava entubada, estava em coma.

Voltou a si dois dias depois, abriu os olhos, me viu, confundiu com meu pai Bill, sorriu, morreu.

Foi duro para ele, mas fiquei ali ao lado dele.  No enterro, não tinha muita gente, ele sorriu tristemente dizendo que a maioria dos amigos tinham morrido.

Depois perguntei o que ele queria fazer, ficar vivendo ali, ir viver comigo, o que pensava em fazer.   Quero ficar aqui, o médico me disse que ele estava muito fraco, fiquei ali com ele, arrumei um professor de desenho, mostrei meus pequenos esboços, o homem ficou impressionado, eu achava graça, pois os tinha feito sem pretensões nenhuma.

Arrumei uma senhora que vinha limpar a casa, fazia comida para os dois, nos acostumamos a ficar horas sentados lado a lado na pequena sala, fui contando minha viagem para ele, as vezes lia o que tinha escrito, comparando as anotações de meu pai Bill, com as minhas, ele se matava de rir, ele sempre teve muita imaginação.

O senhor imagina, num museu em Paris, me peguei falando com ele, pois mencionava um quadro que ele parecia gostar muito, quando vi as pessoas me olhava, pois eu ia comentando como via o que ele tinha mencionado, mas eu o via igual.  Acabei tendo uma gargalhada, pois iam pensar que estava louco.   Teria adorado fazer esse viagem com ele.  Mas sentia a presença dele sempre.

Estar com meu avô facilitava, pois Bill era realmente muito parecido com ele.   Me entregou o diário que o psicólogo tinha entregado.   Li somente duas páginas, há muito sofrimento nessa parte, não fui capaz de ler tudo.

Nessa noite li as primeiras páginas, ele descrevia a jaula que tinha vivido muito tempo, primeiro com outros homens, à medida que esse foram morrendo, ele foi ficando sozinho, ao final, dizia que tinha conversado muito com ele mesmo, que os guerrilheiros, pensavam que ele estava louco.   Um deles o tinha ensinado a falar a sua língua, conversava com esse.   Mas também era o mesmo que os superiores mandavam torturar, depois vinha até a jaula, pedia perdão.

Chorava segurando sua mão, mas quando se aproximava alguém, o maltratava, foi esse homem que o liberou, meu pai o tinha ensinado a falar inglês, atravessou a selva toda com ele, se escondendo, as vezes o tinha carregado.   Eu já não devia pesar nada, pois me carregava como quem carrega um boneco.  Quando chegaram perto de um acampamento o deixou, desapareceu, depois o procurei quando acabou a guerra, mas nunca o encontrei, dizia seu nome.  Talvez tivesse sido morto.

Contava da aldeia que vivia, como tinha sido recrutado para ser guerrilheiro, os americanos tinham matado toda sua família, sua mulher, seus filhos, mas ele achava que Bill era boa pessoa, pois quando ele chorava, este secava suas lagrimas com os dedos.

Não morri, só por causa desse homem, devo minha vida a ele.

Depois a volta, os pesadelos, as torturas, foi então que me lembrei que ele não tinha unhas, tinham arrancado todas, seus dedos eram diferentes, alguns completamente torcidos, mas me fazia bem seus carinhos.

Quando soube que eu era seu filho, chorei como um condenado, que vontade tinha de poder abraça-lo como fazia quando era garoto.

Meu avô escutou que eu chorava, veio ficar perto de mim.  Me abraçou, cantou uma canção que ele cantava quando me colocava na cama.

Pela primeira vez tinha ódio do homem que me tinha arrebatado tudo isso.

Mas o interessante que ele não o culpava, procurava entender.

O mais terrível, foi ler que quando minha mãe quis fazer sexo com ele, explicar que era impossível, tinham lhe arrancado o escroto, ainda deram o mesmo para um cachorro sarnento que estava por ali.  Contava o medo que passou a ter dos cachorros quando se aproximavam dele.  Não tinha ereção nenhuma, não era mais um homem, mas o outro não entendia isso, um dia lhe mostrei para que visse do que eu falava, que não devia ter receio de mim.

O que aconteceu o deixou chocado, que o outro tinha abaixado, colocado seu membro na cara, o beijado.  Foi quando me confessou que tinha me amado desde que me conhecia, que ansiava que eu fizesse sexo com ele.   Depois riu amargamente, agora nem fazes com ela, nem comigo.

A pergunta se ele sabia disso, porque o tinha matado, bem como a ela.

Pediu ao advogado, se podia conseguir que falasse com ele.

Ficou horrorizado quando o viu, era um caco de pessoa, segundo soube depois estava viciado em drogas, tinham abusado dele ao princípio, mas agora era tratado como um lixo.

Falou do diário do Bill, levou um susto, quando perguntou se falava bem dele.

O amei desde o primeiro dia que o vi, quando éramos jovens uma vez fizemos sexo, depois ele nunca mais quis, dizia que iria destruir nossa amizade.  Buscava todos os homens que se pareciam com ele, me humilhava para ele me querer, mas quando conheceu tua mãe, ficou loucamente apaixonado, vê-los juntos era uma tortura.   Quando desapareceu, fiquei como louco a princípio, nos apoiamos um no outro.   Mas quando nasceste, ela te olhava de uma maneira que eu não suportava, sabia que ela via o Bill em ti.

Depois comecei a chegar tarde em casa nos dias que ele ia te ver, imaginava os dois fazendo sexo, era uma tortura, até o dia que ele me mostrou seu corpo, todo marcado pelas torturas que tinha sofrido.  Queria beijar cada ferida, mas ele não deixou, me explicou que jamais poderia fazer sexo.

Mas ela queria ir embora com ele, contigo, me deixando para trás, dizia que não suportava mais estar comigo, sabia do que eu andava fazendo, andando com putas, com homens que se parecessem a ele.

No julgamento só apareceram os trasvestis, mas na verdade houve muitos homens na minha vida.   Te mandei para um colégio, ou melhor disse ao teu avô, que não suportava tua presença, pois eras parecido com Bill, tinha medo de abusar de ti.   Por isso nunca fui te ver, saber que tinha matado meu melhor amigo, mas não suportava a ideia de que eles quisessem viver sem mim.

Quando estava muito perdido, ia me sentar na beira do rio, ficava conversando com os dois, me escondia para me masturbar, me lembrando da única vez que fizemos sexo.

Me perdoe, embora não seja digno disso.  Tenho Aids, não vou viver muito mais.

Lhe disse que o perdoava, pois imaginava viver como ele tinha vivido.

Nesse época meus desenhos ficaram negros, tinha escutado muita miséria, muito ódio, todas as coisas más do mundo.  Talvez por isso nunca me aproximava de ninguém.

Meu avô me aconselhou a ir a um psicólogo, pois me escutava as vezes chorando de noite.

Aceitei seu conselho, comecei a conversar com um senhor, fui falando tudo que tinha vivido, a solidão que tinha vivido na época da escola, a dificuldade de me aproximar inclusive com os da minha idade.   Lhe disse que não tinha experiência sexual nenhuma, que não me sentia atraído por ninguém.

Com o tempo fui melhorando, segundo meu professor, meus desenhos foram ficando mais claros, fiz meu primeiro quadro, um retrato do meu avô, ele ficou emocionado.

Meu professor dizia que eu deveria ir fazer um curso numa escola de Belas Artes, mas não queria deixar meu avô sozinho.   Um dia ele não se despertou, fiquei ali parado, chorando, pois tinha perdido o último elo com o meu passado.

Chamei o meu advogado que veio imediatamente, o enterramos ao lado de minha avó, bem como aonde estavam as cinzas de minha mãe, do Bill.

Ele tinha vendido o apartamento do meu avô em NYC, dizia que alugar era jogar dinheiro fora, tinha o feito por um bom preço, colocamos isso numa conta, que eu pudesse usar mais fácil.

Embora a casa do meu avô paterno agora era minha, me deixou de herança, eu voltaria a viver lá um dia.

Fui passar uma larga temporada estudando na escola de Beaux Arts de Paris, aluguei um studio, aonde pudesse viver, fui conhecendo gente, me obrigando a sair, só não fazia uma coisa, não bebia, nem consumia drogas, quando me cobravam lhes explicava que não era a minha.

Nem sentia curiosidade.

Um dia estava trabalhando num quadro na escola, o professor me apresentou o dono de uma galeria, foram até meu studio, viram tudo que eu tinha, me ofereceu uma exposição, foi assim que comecei a ser conhecido, Lion Stainer.

Tinha transporto para a tela, todo os sofrimentos do meu pai, isso impressionou muita gente, quando me entrevistaram fizeram perguntas a respeito, respondi sinceramente, que tudo se baseava nos diários de meu pai, do seu sofrimento como prisioneiro vietcong.

Fiz mais duas exposições, sobre outros assuntos que gostava, foi quando me apaixonei pela primeira vez.

Um homem se aproximou, disse que tinha conhecido meu pai na universidade.  Disse que nunca tinha se aproximado, pois os três formavam um grupo fechado.

Começamos a conversar, fomos jantar, ele era muito mais velho do que eu, mas me apaixonei assim mesmo, ele a principio se assustou, mas não me importei, voltei para viver com ele nos Estados Unidos.  Vivemos juntos até ele morrer.

Mandei reformar a casa do meu avô em Filadélfia, de tanto tempo fechada as paredes estavam mal, na reforma, transformei o andar de cima num grande studio aberto, passei a viver lá. De vez em quando fazia alguma exposição.

Sentia falta do meu companheiro, pois se uma das coisas que fazíamos muito era conversar, ele tinha ficado muitos anos trabalhando para o governo americano, nas embaixadas, tinha um bom relacionamento, me apresentou muita gente do meio de arte, pois tinha sido adido cultural fora do pais.

Alguns me criticavam, pois pensavam que estava com ele por dinheiro, ele se matava de rir, dizia que eu era milionário, o que era pobre era ele.

Trabalhava nessa época como se tivesse febre, meu trabalho foi mudando, era uma maneira diferente de ver a vida. As cores de repente apareceram em meu trabalho, cada vez foram ocupando mais e mais espaço.

Ele adorava, eu dizia que ele era isso para mim, vida.

Quando ele morreu eu tinha 40 anos, pensei nunca mais vou amar assim.  Tinha vivido com ele desde meus 26 anos, era muito tempo.   Nunca tinha feito sexo com mais ninguém, tampouco sentia necessidade.

Alguns se aproximavam de mim por interesse, graças a deus eu percebia de imediato.

Tinha um amigo seu, que vinha sempre ao studio conversar comigo, dizia que admirava o amor que eu tinha por ele.

Um dia de surpresa me apresentou seu filho, ele era gay, mas tinha sido casado antes.  Começamos a sair, ele pensava muitas coisas como eu, sentia que sua mãe o tinha pressionado muito para odiar seu pai, que isso o tinha feito perder tempo de viver com um homem a quem amava. 

Um dia começamos a brincar, acabamos fazendo sexo.   Ele se achava heterossexual, nunca tinha imaginado nada disso, no dia seguinte disse que tinha que pensar, sumiu uma semana sem dar notícias.

Um dia voltou, disse que não tinha conseguido me tirar da sua cabeça, começamos a viver juntos, saímos com seu pai, este tinha uma agenda impressionante, pois adorava uma festa, ir dançar, a nós não, gostávamos de estar no nosso canto, lendo, escutando música, um agarrado ao outro.

Quando fui para Filadélfia, ele conseguiu ser transferido para lá.

A principio estranhou um pouco, mas estávamos perto de NYC, quando queríamos escapávamos um final de semana, mas avisava ao pai, queremos estar contigo, não com um bando de gente.

O pai me agradecia, fazer feliz ao seu filho.

Vivemos juntos até hoje, agora temos quatro filhos adotivos, tivemos que ampliar a casa, imaginava meus avôs como estariam contentes com isso, escutar ruídos de crianças pela casa.

A vida seguiu em frente como sempre, nada para nunca.

 

 

 

 

 

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