LETRA E MÚSICA
Tinha plena consciência do que tinha se metido, estava outra vez em reabilitação, por consumo de álcool. Há anos tentava se livrar disso, mas sempre encontrava um motivo para ter uma recaída. A primeira vez que tomou um porre, foi para se vingar de seu pai, tomou do meu melhor whisky uma garrafa inteira, que tinha acabado de ganhar, levou uma surra de fazer gosto, a partir disso, quando tinha problemas era o que fazia.
Era o último filho de uns 15, sua mãe parecia uma velha, perto de seu pai, como dizia Maria José, ou José, basicamente tinha tido um filho ao ano, quando ele nasceu, normalmente tinha o parto em casa, mas foi complicado, José chamou uma ambulância a levou para o hospital, ela pediu ao médico se podia fazer com que não tivesse mais filhos, ele achou uma besteira, mas ela disse que tinha 15 filhos, que não aguentava mais. Como o teve de cesárea, o médico aproveitou para lacrar o ovários, assim não teria mais filhos.
Seu pai quando soube ficou uma fera. Era metido a intelectual, professor de história na universidade, tinha boa pinta, vivia cortejando as alunas.
Ela sabia disso, mas se vingou direitinho, passou a dormir num quarto só dela, mandou trocar a fechadura, se fechava por dentro. Ele ficava uma fera. Talvez por isso quando morreu, apareceu uns quantos filhos atrás da herança.
Vivíamos num imenso casarão, na rua Cosme Velho, um dos poucos que aguentaram em pé, sem se transformar em condômino. Minha mãe, viveu até aos meus 10 anos de idade, quando foram abrir seu testamento, dizia que só podia fazer isso, quando eu tivesse 21 anos, antes disso nada. Começou um tempo de penúria, levei muito tempo para entender por quê?
O velho teve que se adequar a levar uma vida mais simples, reclamava dizendo que seu salário ia todo para alimentar tantas bocas. Ai já sabia que quem tinha dinheiro era ela, não ele, tentou vender o casarão, mas o advogado disse que ele não podia, eram casados com separações de bens, o pai dela, um português das antigas, nunca gostou do meu pai, então fez com que se casasse com separações de bens.
Houve uma época inclusive que ele teve que começar a vender escondido, alguns livros da sua biblioteca pessoal, muito famosa na época. Teve que dar aulas em colégios, afinal criar tantos filhos era difícil. Assim que as coisas melhoraram, me mandou para um colégio interno, pois dizia que eu era o único que não se parecia com ele. Isso era uma verdade, tinha saído a minha mãe, era mais moreno que os outros, cabelos crespos, olhos verdes como o dela. Me mandou estudar interno, pois dizia que não podia me olhar.
As festas, natal, ano novo, meu aniversário, passava com a José, que era a única que me procurava, já não trabalhava mais lá, não podia pagar seu salário. Enquanto eu estava ela aguentou, mas quando fui embora, saiu de lá.
Eu na verdade só sentia falta da minha mãe e dela, pois o resto me maltratava, eu tinha que usar as roupas velhas dos meus irmãos, aliás um ia passando para o outro à medida que crescia.
Já estava na faculdade, sem que meu pai soubesse, tinha entrado com uma bolsa de estudos, pelas minhas excelentes notas, vivia na casa da José, no morro Santa Marta. Não me importava, ajudava os outros jovens de lá quando tinham dificuldades em aprender.
Comecei a estudar filosofia, queria ser escritor. Mas claro lá no morro me perdi pela música, ia as rodas de samba, escrevia poesia, depois a transformava em música, o pessoal gostava.
Pela primeira vez tinha gente que gostava de mim.
Um dia, cheguei em casa, um tanto quanto bebido, ela me chamou as falas, se segues assim, serás um bêbado que perdeu seu futuro, num copo.
Quando fiz 21 anos, o advogado nos localizou, disse que tínhamos que ir a leitura do testamento.
Todos caíram do cavalo, inclusive o velho. Esperavam colocar a mão na mansão e vender.
Tudo era para mim, o único filho que ela tinha amado. Os outros a ignoravam. Meu pai tentou impedir, mas o juiz, tinha um na leitura do testamento, porque o advogado pediu.
Disse que nanai, que estava bem escrito, como registrado em cartório, que ele não podia fazer nada, inclusive a conta no banco era minha.
Não podia imaginar o que tinha de dinheiro lá. O advogado a vinha aplicando todos esses anos.
A primeira ordem que dei, foi uma suave vingança, mandei vender o casarão, todos tiveram que arrumar suas maletas, ou como dizia a José, seus panos de bunda, saírem noite adentro, levando tudo que podiam do recheio da casa. Não me importei, pois a muito tempo que as coisas boas o velho tinha vendido.
Verdadeiramente o rifaram, ninguém queria ficar com ele, tantos filhos para nada, dizia a José, acabou indo viver com uma das minhas irmãs mais velha que já era casada. Vendeu o resto da biblioteca.
Como morreu meses depois, me acusaram de ter sido o culpado de sua morte. Eu ri na cara deles, tão culpado como vocês que mamaram dele a vida inteira, vão trabalhar seus vagabundos.
Com o dinheiro, comprei um bom apartamento lá pros lados do Posto Seis em Copacabana, era antigo, mas grande, levei a José comigo, afinal era ela a minha família. Tinha me cuidado, vivia a anos em sua casa, nunca ninguém me procurou.
Era uma vingança bem dada, dizia ela. Esses sem vergonhas não fizeram nada a vida inteira, agora teriam que se apanhar. Mudei meu nome, passei a usar o nome do meu avô materno, pois tinha uma foto dos dois, era parecido com ele, Joaquim Andrade, um português respeitado, que tinha feito fortuna, trabalhando como um louco.
Acabei a faculdade, agora participava com os companheiros de encontros musicais, aprendi a tocar violão, assim escrevia as músicas que compunha. Logo consegui mostrar uma que tinha feito para a Elizeth Cardoso. Ela gravou, em seguida foi um sucesso, logo consegui outras, assim foi. Mas sempre, tinha que controlar a bebida, José me controlava o tempo todo, quando morreu, a enterrei ao lado da minha mãe, afinal merecia.
Durante um tempo fiquei em branco, sem saber o que compor, mas dessa dor da segunda perda, fiz uma bela música, um samba canção que na voz de uma das cantoras mais cotadas do momento, estourou nas paradas. As mulheres se aproximavam de mim, pois sabiam que tinha dinheiro, mas isso não funcionava. Tinha uma vida intima, restrita, quando queria sexo, procurava numa sauna, ou mesmo num botequim. Gostava muito de um mulato, ou negro, que no sexo fosse paciente comigo.
Essa parte da minha vida, acabava sempre mal, nunca ficava com ninguém, gostava muito da minha solidão, era perfeita para a vida que levava. Quem ia aguentar um cara que bebia demais.
Não aparecia em entrevistas, ou mesmo rádios, jornais, revista, vivia no meu mundo, me negava a falar da minha vida, sair em fotografias.
As cantoras normalmente adoravam a minha música, diziam que eu tinha o dom de falar o que elas gostariam de cantar.
Um delas dizia sempre, você entende dos nossos sentimentos como mulher, é como se estivéssemos falando do nosso interior.
Nunca mais nenhum irmão me procurou. Agora quando era internado, me perguntava pela família, dizia que não tinha. Na verdade, não podiam me encontrar, pois eu tinha outro nome e sobrenome, que não era como o deles. Volta e meia sabia de alguma besteira que algum deles tinha feito. O velho que fez tudo para preservar seu bom nome, agora via tudo ser arrastado na lama.
Nunca estendi a mão para nenhum deles.
Estava no hospital para exames, sabia que o problema era o álcool, mas era meu balsamo, quando os psicólogos perguntavam era o que eu dizia.
Um enfermeiro, muito parecido comigo, me levou para os exames. Ria dizendo que éramos parecidos. Imagina que na minha casa, me chamam de intruso, pois ao parecer, sai a minha avó e a um tio que não conheço. Perguntei seu nome, ele era filho de um dos meus irmãos.
Meu pai, vive do conto, assim que nasci, minha mãe deu no pé, disse que como nunca tinham se casado, não devia nada a ele. Falava muito de um passado que viviam numa boa, mas que tinham perdido tudo, pelo destino.
Queria estudar medicina, mas não pude, mas adoro o que faço, estou juntando dinheiro, um dia poderei passar para medicina. Prática não me falta.
Os exames não foram bem, teria que me operar, deixar de beber, levar uma vida melhor.
Na operação me tiraram um dos rins, o baço, outras merdas que já estavam estragadas. Teria que agora ter um enfermeiro para me cuidar. Perguntei ao rapaz se não queria juntar mais dinheiro, me cuidando nas suas horas vagas. Posso cuidar do senhor pelas noites, de dia trabalho aqui, conheço uma garota que pode cuidar do senhor durante o dia, eu ficaria com o turno da noite, isso é consigo.
Gostei da garota que ele me apresentou, trabalhava somente quando a contratavam para substituir alguém. Era muito divertida, quando fui para casa, ela foi junto, me fazia comida, me controlava bem, Jair, chegava no final do seu turno, já vinha de banho tomado do hospital, o fazia sentar-se para jantar comigo. Era muito divertido, depois nos sentávamos na varanda que dava para o Mar, ficávamos ali, tocando violão, compondo alguma música juntos.
Fizemos uma que foi um sucesso. Lhe disse que ia contatar com alguém, assim avisei uma das minhas cantoras, que tinha uma música própria para ela. Escutou, depois cantou comigo várias vezes, arrumei a letra para ela, como sempre fazia.
Quando recebi o pagamento pela música, por ter sido publicada, entreguei tudo a ele, para pensar em pagar a matrícula. Ficou como um louco. Agora ia a faculdade de manhã, mas de noite estava lá em casa, acabou sendo um filho para mim.
Uma vez me perguntou pela minha família, se eu não tinha nenhuma. Contei a minha história, o quanto tinham me tratado mal, por ser o único parecido com minha mãe, os anos todos que passei num internato, porque não lhes interessava nada. Nunca entendi por que, nem meu pai me queria.
Acabei sendo criado por uma empregada, que foi minha segunda mãe, quando eles pensavam que iam colocar a mão na mansão, se deram mal, pois era para mim. Creio que se minha mãe tivesse deixado para eles, me mandariam a merda, para ficar com tudo.
Foi tudo ao contrário, quando morreu o velho, ainda aparecerem uns quantos filhos que tinha por fora. Viveram na boa vida muitos anos, o velho não os preparou para enfrentarem a vida, agora nem quero saber deles tampouco.
Tu eres o único que me tratou bem, já somos parceiro numa música.
Ah seu meu pai soubesse, nunca ajudou minha mãe em nada, ao contrário, era capaz de aparecer para pedir dinheiro emprestado. Ela deu um duro danado, trabalhando como uma louca para que eu pudesse pelo menos fazer uma faculdade. A que ela não tinha feito, mas morreu jovem, minha avó acabou de me criar.
Quando ele se formou, já estava muito melhor, saia com os velhos amigos, riam porque eu tomava um guaraná, ou coca cola, beber jamais.
Voltei a compor, as minhas cantoras agora diziam que minhas músicas tinham perdido a dor, agora tinham mais alegria.
Não me importavam, pois gravavam a mesma, sempre faziam sucesso, eram dinheiro a mais.
Mas claro o tempo passa rápido demais, uma noite despertei com umas dores tremendas, chamei o Jair, que veio correndo, me examinou, chamou uma ambulância, fomos para a clínica aonde ele antes tinha sido enfermeiro, agora era médico. Depois de muitos exames, disseram que eu precisava de um transplante de rins, teria que fazer hemodiálise, senão a coisa ficava feita.
Ele quando entrou no quarto, meu viu muito sério, me provocou, dizendo que pela cara ia sair um samba canção, o fiz sentar-se. Olha meu filho, eu te quero como se fosse isso mesmo, eu estou com 75 anos, se por ter dinheiro consigo uns rins, que lucro? Nada, teria mais tempo para viver uma vida chata, cheia de cuidados. Você se lembra quando foi trabalhar para mim, a merda de vida que eu tinha, minha única alegria era quando vinhas de noite, que tocávamos violão, conversávamos.
Não quero fazer hemodiálise, tampouco um transplante, não me interessa, a culpa disso é toda minha, tirarei direito a alguém mais jovem, que tenha uma família, que precisa disso para seguir em frente.
Tentou me convencer, depois veio o médico dos transplantes, este sim acabou concordando comigo, que teria uma vida limitada pela minha idade.
Preparei tudo a consciência, disse ao advogado, que agora era um velho, que veio com seu filho, queria que ele procurasse entre os descendentes de meus irmãos, algum que valesse a pena investir. Deixava uma grande parte para o Jair, mas queria saber se algum deles tinha chegado a algum lugar. Fizeram uma verdadeira sindicância. Só encontraram duas garotas de pais diferentes, que eram professoras, essas deixei uma parte.
Estava vivendo a base de morfina, com um oxigênio ligado a mim 24 horas do dia. Mas podia ir em paz, tinha feito uma coisa que amava, música, mas letra e música, ainda disse ao Jair, a maioria das pessoas nem sabem quem eu sou, só me conhecem pelas minha músicas, isso se um apresentador diga algo, a maioria não diz.
Soube que um amigo, com quem participava das rodas de samba, tinha montado uma escola, retirei o dinheiro que tinha que receber de várias músicas, o Jair fez contato com ele, lhe entreguei esse dinheiro para comprar instrumentos para sua escola. Foi único, me disse que agradecia, esses meninos precisam de um lugar seguro para aprender alguma coisa, de uns dois ou três seguirem em frente já fico contente.
Um dia, senti, era o momento, via ali ao pés da cama, a José, bem como minha mãe, estendi os braços, fui com elas.
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