lunes, 4 de enero de 2021

 

                                                  AAGO

 

AAGO= Tempo, relógio, hora.

 

Dizem que estou sempre com pressa, que já nasci assim, mas fazer o que, me conformo, procuro nunca chegar atrasado em lugar nenhum, prefiro esperar do que ser esperado.  Meu avô diz sempre que o “apressado come cru”, pode até ser verdade, mas o “Tempo”, sempre foi um fator importante.

Meu nome é Ernesto da Silva , mas também sou conhecido como Oribara, o filho do Orixá Bara.

Nasci fora do tempo, minha mãe estava trabalhando, era enfermeira num hospital em Rio, no mesmo hospital, meu pai trabalhava como médico.  Era ajudante de um dos médicos mais importantes do hospital, ajudava numa operação, quando rompeu águas. Uma baita confusão, duas companheiras e amigas a levaram para a sala de parto, avisaram meu pai, que veio correndo, não queria perder o nascimento de seu filho.  Mal chegou, eu já estava nascendo, as enfermeiras brincavam dizendo esse menino é apressado, veio antes do tempo, ela nem teve tempo de ter contrações.   O médico ainda tentou que ela fizesse uma cesárea, mas nem deu tempo.  Quando me viram as enfermeiras riam, não acreditavam.   Imagina meu pai era um mulato claro, da Angola, cuja mãe tinha emigrado para o Brasil, lavou muito chão de gente rica, bem como costurando, fez tudo para que seu filho fizesse universidade.

Minha mãe era uma mulata, linda, mistura de negro, francês e português, sabe se lá mais o que, as amigas tinham inveja de seus cabelos lisos, sem necessitar fazer nada.

Tinha sido miss Rio de Janeiro, representando Bangu, quando lhe perguntaram qual era seu maior sonho, disse que enfermeira, já que não tinha dinheiro para estudar medicina.  Todas diziam besteiras, com o dinheiro que ganhou, pagou a universidade.   Mas quase perde tudo, pois no final de seu tempo de Miss, se descobriu que tinha uma filha.

No hospital quando começou a trabalhar, conheceu meu pai.  Ele levou anos até ela aceitar sair com ele.   Não lhe escondeu nada, tenho uma filha, de um erro de juventude, vive com meus pais,  ele disse que se ela quisesse podia adota-la.   Mas isso nunca aconteceu.

Tentaram muitos anos ter filhos, mas o médico dela, não recomendava, tinha um problema de coração, complicado, uma gestação, bem como um parto, podia ser difícil.

A confusão e as risadas, foi que eu nasci com os cabelos lisos, loiros, olhos azuis, mulato, mas com essa diferença.   Quando meu pai se virou para me colocar junto a ela, sorriu e morreu.

Na autopsia depois se revelaria, que seu coração era como folhas de papel, talvez por isso eu tivesse nascido assim.   Mas segundo minha madrinha, a melhor amiga de minha mãe, era porque eu era filho de Exu Bara, ele deve ter pressentido alguma coisa, adiantou o parto.

Fiquei um tempo numa incubadora, era o rei do hospital, pois todo mundo queria ver esse menino diferente.

Meu pai vivia num belo apartamento na Av. Engenheiro Richard, ali no Grajau, a quem primeiro pediu socorro foi a sua mãe, ela tinha se casado a alguns anos, com um professor da Universidade, limpava sua casa em Ipanema,  estavam sempre conversando sobre coisas, sobre o mundo.  Ele se apaixonou por ela, tinham a mesma idade.   Se via que sua família também tinha um pé na cozinha, pois tinha os cabelos muito crespo. 

Foram correndo para o hospital, imediatamente me tornei o centro da vida deles.

Meu pai estava completamente abalado, não conseguia entender, pois seu médico a via quase todos os dias.   Tinha recomendado repouso absoluto, mas ela dizia que estava bem, que pretendia trabalhar até o final.   Mas tudo era aparências.  Ela tinha sido firme quando ficou gravida, sonhei em ter muitos filhos, não vou desistir, disse isso quando o médico recomendou que abortasse, pois podia ser um problema sério para seu coração, mas como dizia meu pai, quando colocava uma coisa na cabeça, não havia maneira de tirar.

Minha irmã, mais velha, que não vivia conosco, anos depois me acusaria de ter matado minha mãe, fiquei confuso, fui perguntar ao meus queridos avôs.   Me contaram tudo, ele dizia que nunca se devia esconder a verdade, pois era pior.

Entendi muitas coisas, muitas relativas com os sonhos que tinha, desde garoto, as vezes via a sala do parto, a necessidade de sair rápido, alguma coisa me dizia tens que ir em frente.

Ser diferente, me causou muitos problemas, bullying era dos menores, andava pela ruas as pessoas paravam para me olhar.

Uma vez uma idiota perguntou a minha avó Sarah, porque ela tingia meus cabelos, não podia acreditar que eram assim mesmo. Eu estava dormindo, quando abri os olhos, ficou como louca por mim.  Sempre nos encontrava, minha avó dizia que fazia de proposito, tinha sempre alguma coisa para me dar.   “um dia soltou que eu lhe dava a paz” que tinha perdido a muitos anos, que quando me via, se sentia consolada.

Para minha avó, parecia um disparate, mas Gilberto ou Gil como todo mundo lhe chamava, dizia que não, que não se enganasse, que eu tinha algo em especial.  Ele sempre foi um grande estudioso do ser humano.  Creio que falei seu nome antes de todo mundo, tinha uma paixão por mim impressionante.  Me jogava no ar, era alto, eu quase batia no teto do apartamento.

Meu pai tinha uns horários, complicados, entre plantões, consultas, as vezes passava dois dias sem ir a casa.   Vivia conosco a senhora que minha avô conseguiu para ser minha mãe de leite, tia Berenice, ou Nice, vivia nas dependências de empregados, mas se sentava na mesa para comer conosco, como mais um da família.   Ela era a difícil, me fazia ter modos na mesa, comer direito, não podia deixar comida no prato, senão, não tinha sobremesa.   Estava sempre limpo, vestido.

Minha avó dizia com certo ciúmes, que quando era bebê, só dormia se estivesse nos seus braços, por isso talvez tenha sido sempre assim, Deus no céu, eu na terra.   Era filha de Oxum, com Ogum, todos os sábados subia o morro, para ir ao terreiro de Candomblé que  frequentava.

Meu pai quando estava em casa, o mundo podia cair em volta dele, que ele estava comigo, foi o melhor pai do mundo.  Quando eu soube como tinha nascido, lhe perguntei se não tinha raiva de mim.

Meu filho, ela sabia que não devia ficar gravida, quis porque quis ter-te, não houve jeito de faze-la mudar de ideia. Por isso aconteceu tudo, mas ainda teve um tempo para te ver.  Me disse, é lindo.

Sempre me consolava quando reclamava por ser diferente dos outros garotos, passava a mão pelos meus cabelos loiros, dizendo, eres a mistura de todos nossos genes, por alguma coisa será.    Me ensinou a me defender dos garotos maiores, quando fui para outra escola estudar o secundário, íamos a academia de boxe que tinha perto de casa, ou ao Judô.  Assim quando vieram me encher o saco pela primeira vez, um tipo loiro, tonto, gordo que tinha na minha classe, lhe perguntei se sabia o que estava fazendo.  

Riu dizendo que sim, que ia me esmagar, negrinho de merda.  Quando avançou, não precisei muito, lhe dei um soco na barriga imensa que tinha, que se cagou nas calças.   Nunca mais me encheu o saco.

Na verdade, devia muito ao meu avô, quando tinha quatro anos, eu já sabia ler e escrever, me contava histórias, nada de besteiras.   Lia Monteiro Lobato para mim, o sítio do Pica Pau Amarelo, quando vi na televisão, não tinha o mesmo encanto que tinha na voz dele.  Me desinteressei em seguida.  Me leu Cervantes, mas antes me contou a história dos moinhos, coisa que no Brasil eram diferentes.   Conseguia fotos para ilustrar o que me contava, eu preferia ficar com ele, a estar na rua jogando bola com os de minha idade.

Os seus presente sempre era algum livro, que depois iriamos discutir até a exaustão, diga-se de passagem, que ele incutiu esse hábito em minha avó.  Que quando o conheceu, era analfabeta, a ensinou a ler e escrever.  As vezes lia o mesmo livro que eu tinha lido, para poder participar das conversas.   Meu pai se matava de rir, dizia Gil, estas transformando antes do tempo esse garoto num erudito.

Em seguida, eu queria saber o que era erudito.   Na escola não gostava os esportes, o único que eu me saia bem, ganhando prêmios, competindo sempre, era correr.  Gil dizia que era nato em mim.  Não fazia o menor esforço.

As vezes subíamos os quatro, Nice preparava um lanche, íamos para a Estrada da Paineiras, ele subia pela Usina, para o Alto da Boa vista, de lá pelo meio da floresta, até a Estrada da Paineiras, a vista era impressionante, saímos os dois a correr, ele a seu ritmo, eu ia e voltava várias vezes, tomávamos banhos nas águas que caiam dos mananciais, água pura segundo ele, encontrávamos um lugar plano, Nice estendia uma toalha, ficávamos olhando as vistas, comendo delicias preparada por ela.

Uma vez ela me pegou conversando com uma árvore, perguntou o que eu estava vendo?

Ora mãe Nice, estou falando com estes senhores que vivem nessa árvore, estão dizendo que em breve tenho que ir ao seu terreiro.

O que a impressionava é que eu falava com eles e Yoruba.  Comentou com meu avô o assunto, esse menino fala Yoruba, mas se digo isso a dona Sarah, vai ficar furiosa, pois é católica, apostólica romana.    Era uma verdade, minha avó ia a missa toda semana, eu morria de tedio quando tinha que ir.

Um dia soltei ao Gil, que ia junto, aqui não tem espírito nenhum, é tudo um grande teatro.  Ela não gostou, ele teve que lhe explicar que meu destino era outro.    Nunca a tinha visto tão furiosa, falou com meu pai.   Ele riu, a madrinha dele, fala a mesma coisa, todos os dias me pergunta por ele, dizendo se ele já falava Yoruba.   Sempre achei um desproposito, divertido, como um garoto ia falar essa língua da Africa, se nem a senhora fala.

Minha mulher não era do candomblé, nem da umbanda, então não sei.

Um final de semana que ele tinha livre, mãe Nice disse que tinha uma saída de Santo no seu terreiro, perguntou se eles queriam ir, nunca tinham ido.  Arrumaram uma desculpas, mas ficaram surpresos, pois na hora que ela ia sair de casa, eu já estava vestido de camisa branca, calças curtas brancas, meias brancas, sapatos não tinha brancos, mas estava de Bamba.

Aonde vais garoto, soltou meu pai?

Eu vou com mãe Nice, chegou a hora de ir conhecer essa gente, vamos mexam essas bundas gordas para irmos.   Nunca foram, não sabem como é.   Nessa alturas eu tinha 10 anos de idade.

Quando chegamos, imagina, subir de carro de marca, na favela, era uma temeridade, mas mãe Nice, dizia, eles nunca tocaram numa coisa do menino.

Quando desci do carro, os outros garotos, correram para ficar ao meu lado, alguns eu conhecia da escola, um dos maiores ficou de cuidar do carro.

Quando abriram a porta do terreiro, eu fui direto a uma imensa mangueira, o Iroco do lugar, me prostrei no chão, rendendo homenagem aos Orixás que estavam ali, só escutei uma voz de homem muito forte, dizendo, isso deviam fazer todos vocês seus filhos de santo mixurucas.

Me levantei, falei com cada um dos Orixás, eu os via, falavam comigo, uma mulher muito bonita, me disse que minha mãe estaria orgulhosa de mim.

Só então me virei, ali está o Babalorixá do terreiro, me saudou, como Orixá Exu Elegba, se inclinou, todo mundo olhava, me mandou tirar os sapatos, me levou pela mão para ver todos os quartos de santos, inclusive a pessoa que ia fazer uma saída.

Para quem quisesse escutar, este garoto já nasceu feito, não precisa raspar a cabeça, nada.

Meus avôs, meu pai, iam seguindo, sem entender porra nenhuma como diria depois o Gil, estavam maravilhados, pois eu só conversava com o homem que depois entendi seu nome, era Gregório De Xangô.

Segurando sua mão, lhe disse que tinha um problema de estomago, serio, venha meu pai, ninguém podia entender, o fiz deitar embaixo do Iroco, num pano branco que mãe Nice me trouxe.   Fui até a mangueira, arranquei umas folhas, mas antes pedindo licença, pedi uma quartinha com água, comecei a rezar em volta dele, lhe cobri com o pano branco, só deixando o rosto de fora, conforme foi indo, no lugar aonde tinha problema, começou a sair uma massa negra, fedia muito, a enxofre, o espanto das pessoas era grande.   Dizem que incorporei, não me lembro, Gil conta que a primeira reclamação era que meu corpo ainda era pequeno.   Que meu Exu, começou uma verdadeira confusão, correndo em volta do corpo deitado no chão, que essa massa negra, cheirado enxofre, foi subindo, sendo absorvida por umas ramas da árvore que morreram na mesma hora, ele, chamou dois homens altos, mandou cortar essas ramas, fez uma fogueira com elas, as pessoas tapavam o nariz.  Se os homens entendessem que quando fazem essas coisas, a mesma se volta para quem fez.

Só me lembro que depois estava sentado no chão, segurando a mão de Pai Gregório de Xangô.

Ele chorava muito, sabia quem tinha feito essa maldade com ele, me dizia entre soluços, tentas ajudar as pessoas, elas sempre querem mais, mais e mais, quando negas, te fazem uma maldade.   Eu sabia que quem tinha feito isso, era um homem por quem ele tinha sido apaixonado.

O ajudaram a se levantar, as Yaos, correram preparar um banho de descarrego para ele, transferiu a saída para o dia seguinte.  Sentado ao lado dele num banco, segurando sua mão, cantamos toda a gira.   Meu pai dizia a sua mãe, volta e meia, fecha a boca, senão te caem os dentes.  Gil ria muito.   Virou um grande amigo de Pai Gregório.   Com ele aprendeu os mistérios dos Orixás.   Minha avó, continuou indo a suas missas, nunca mais subiu, ao terreiro, eu agora ia todos os sábados com mãe Nice, Gilberto, meu pai quando estava livre também, ela arrumava uma desculpas para ir tomar um café ou chá na Colombo com as amigas do prédio, mas nunca perguntava, aonde tínhamos ido.

Com 12 anos, eu já jogava os Búzios, mas nunca cobrei a ninguém.  Um dia olhando um jogo que sem querer tinha feito para o Gil, ele apenas estava sentado ali ao meu lado.   Lhe perguntei se tinha um tio chamado Nestor.

Sim, mas faz anos que não sei dele, nem sei se está vivo, lhe disse aonde estava, está sozinho, doente. Disse ao meu pai que fosse com o Gil, que depois eu desceria de ônibus com a mãe Nice.  Disse direito aonde estava.

Estava internado no Hospital Escola São Francisco de Assis, na Av. Presidente Vargas, como indigente, o tinha encontrado mal na rua.  Tinham lhe roubado a carteira, ele só sabia seu próprio nome, Adalberto Nunes, nada mais.

Gil se identificou como seu sobrinho, meu pai o levou para o hospital que trabalhava, em breve o homem estava bem.  Já estava muito velho, mas cismava de trabalhar, tinha um escritório de advogados na av. Rio Branco, por isso quando desmaiou na rua, o levaram para o hospital mais próximo.

Gil cuidou dele, como um filho, acabou indo viver conosco, as veze no final de sua vida, ficava sentado ao lado dele segurando sua mão.   Dizia, eu não aproveitei nada, como nunca tive ninguém, trabalhava como um louco, para que me respeitassem, no final me chamavam de velho gaga, que devia estar em casa de pijama, em vez de estar nos tribunais, mas mostrava a que tinha vindo, ganhava todas as causas.

Viveu conosco uns seis anos, vendeu o escritório, dizia ao Gil, não se preocupe, sei o que faço, o acompanhava ao Banco, mas fazia as coisas sozinho.  Gil foi uma única vez a sua casa, tinha um apartamento no começo da Av. Vieira Souto, com Rua Gomes Carneiro, um edifício dos primeiros da zona.  Gil dizia que não o tinha convidado para subir, ele gosta da sua privacidade, eu respeito.   Uma vez por semana Gil e minha avó o levavam para almoçar na Confeitaria Colombo, ele passou a insistir de que mãe Nice fosse também, eles não cozinham como a senhora.   Mas claro, lá ele encontrava seus velhos amigos.  Depois gostava de ir tomar um chopp no Bar Luiz, na rua da Carioca.   Depois de noite para me provocar, contava o que tinham feito, mas sempre tinha uma caixa de doces que eu ia comendo devagar, controlado por mãe Nice.  Senão devoras tudo de uma vez, ficas com dor de barriga.

Quando morreu, tinha dado um envelope ao Gil, para chamar seu advogado particular com suas últimas vontades, queria ser enterrado no mausoléu de sua família no cemitério São João Batista, como tinha ido a terreiro uma vez, pediu que eu fizesse uma oração no enterro.  O velório foi muito concorrido, as pessoas vinha falar com o Gil, com minha avó ao lado, falavam do grande homem que tinha sido.   Apesar de tudo, não era metido a besta, Gil não entendia o que era apesar de tudo.  Um amigo dele, escreveu sobre sua morte no Jornal o Globo, dizendo que o pais perdia um grande Jurista, que podia ter feito uma carreira como Juiz, mas gostava de ser advogado dos desfavorecidos.

O mesmo advogado avisou o Gil que tínhamos que ir a leitura de testamento dele, pois éramos beneficiários.

Fomos pensando que íamos encontrar muita gente, mas ali só estava uma irmã de caridade.

Deixava para o Orfanato que dirigia uma boa soma de dinheiro, ele era proprietário do casarão aonde estava o orfanato, ficava para elas.

Para o Gil, deixava o apartamento da família, em Ipanema, bem como uma bela soma em dinheiro, mas o melhor era eu, ganhava uma boa soma de dinheiro, para ir fazer a faculdade que quisesse tranquilo, bem como um apartamento em Copacabana, ali no Posto Seis, além do local do escritório na cidade.  O Gil ainda ganhou vários escritórios no centro da cidade.

Estávamos de boca aberta.  Gil ainda soltou, eu pensei que íamos ter que pagar os impostos daquele apartamento, pois imagina quando o encontramos estava como indigente no hospital.

Para mim deixou uma carta em particular.  Só li quando chegamos em casa, levaríamos uns dias para entender tudo, saber o montante da herança.

Me fechei em meu quarto para ler a carta, me lembrava de tê-lo visto escrever, mas quando chegava perto, escondia.

Teu Orixá me encontrou, quando eu mais precisava de ajuda, vocês me receberam como se eu fosse da família, nada mais justo tudo isso.   Creio que deves te preparar para ser uma homem duplo, pai de santo, o que é natural em ti, mais alguma profissão, já te vi curar as pessoas, eu faria medicina, assim não podem te chamar de curandeiro.  Juntaras as duas coisas.  Falo como advogado.

Mas deves aproveitar a vida também, a juventude passa muito rápido, se forem morar na minha casa, poderás fazer surf com os da tua idade.

Quero que sejas feliz, não faça como eu, que nunca amei ninguém na vida, nem aproveitei minha juventude, estudando para ser melhor que meu pai, que era um tirano.  Seja Feliz, cuide sempre dessa pessoa maravilhosa que é mãe Nice.

Depois dei a carta para o Gil, ele leu para todos sentados na mesa, mãe Nice, chorava emocionada, me lembro do dia que insistiu que eu fosse junto com vocês a Colombo, imagina uma negra de favela, na Colombo, mas me tratou como uma senhora.  Me apresentou a todos aqueles velhos, dizendo que igual a mim nos quitutes era impossível.

Quando perguntavam quem eram os outros, dizia orgulhoso, minha família.

A discussão era, se iriamos viver lá ou não.   As vezes mãe Nice por ser uma pessoa simples resolvia o problema, eu iria lá olhar, dar uma vista d’olhos, como quem não quer nada.

Fomos com a chaves, Gil se apresentou na portaria, como sendo sobrinho do Adalberto Nunes, herdeiro do apartamento, perguntou se tinha alguma conta para pagar.

O homem riu, talvez ele fosse o único que pagava o condomínio em dia, aqui as pessoas fazem pose, mas na hora de pagar, hum, uma merda.   Ia tudo para o banco, esse pagava todas as contas.

Venham os acompanho até lá em cima.  Não era um edifico alto, o homem foi dizendo que tinha a chave, que entrava para molhar as plantas, que sua mulher era quem limpava tudo.

O apartamento era de frente para o mar, no último andar, não é o maior do prédio, pois tem essa varanda, ele amava isso, suas plantas.  Tá vendo aquele cadeirão, nos finais de semana se sentava ali, ficava olhando o mar, embora eu nunca o vi descer, para ir à praia.

Gil se apaixonou pela biblioteca, disse que sempre tinha sonhado em ter uma assim, mas o que estranhamos, era que todos os porta fotos estavam de cabeça para baixo, o seu João, soltou, são as fotos do velho, não permitia que ficassem de outro jeito.  Os moveis eram antigos, mas bons,

Tinha quartos para todo mundo, eu ainda soltei, porque ele tinha dito um dia a mãe Nice, que na cozinha do seu apartamento ela seria uma rainha.   Era realmente uma bela cozinha, a área de serviço, bem como o quarto de empregados, estava vazio, era como um pequeno apartamento.

Para meu pai, seria excelente, ficaria mais próximo de seu trabalho, todos me olhava esperando meu parecer, eu estava era prestando atenção num grupo de surfista ali no Arpoador, eu tinha adorado poder ficar olhando o mar.   Estava no último ano da escola, pronto para fazer o vestibular, decidi fazer o que ele tinha falado, depois de jogar os búzios com essa pergunta, além de conversar com pai Gregório.    Ele disse que pensava igual, às vezes, como fizeste comigo, fizeste uma cirurgia espiritual, podia te chamar de charlatão, ou acusar de alguma coisa, melhor assim, se tens oportunidade, não desperdice.

Meu pai teve uma ideia, se fossemos para lá, ele venderia o apartamento ali do Grajau, iria diminuir os dias no hospital, pois estava cansado, abriria uma consulta ali no pé da favela, assim podia atender a essa gente.

Todos aplaudimos a decisão.   Primeiro minha avô, bem como mãe Nice, ajudadas pela mulher do João, a Dejanira, foram jogando fora tudo que não servia.  Principalmente as fotos do velho, Gil guardou uma em que aparecia ele com o tio, nada mais.  Fez o mesmo com os livros, separou os que lhe interessavam, o resto doou para uma biblioteca em Copacabana.

Mandou pintar todo o apartamento de branco, em menos de um mês nos mudamos, ainda fui as últimas provas na escola no Grajau, depois me dediquei a estudar para o Vestibular.  Mas Gil me disse, não é necessário, eres inteligente. Vá aproveitar a vida, foi comigo comprar uma prancha de surf, comecei a aprender, me sentia como um peixe na água.

Fazer surf tudo bem, mas ficou difícil sim, fazer amizades, os papos eram superficiais, quando encontrava uma pessoa interessante para conversar, logo caçoavam dizendo que estava se metendo com esse negrinho loiro tingido.    Com tanto sol, eu fui ficando mais escuro, então a diferença de cabelo e olhos apareciam mais.    Mas a estas alturas da vida já cagava e andava para isso.

Fiz o Vestibular, passei, o negócio agora era escolher aonde estudar. 

Um dia, se fecharam na biblioteca os quatro, não me deixaram entrar, quando saíram, meu pai disse amanhã vais a uma autoescola, para aprender a dirigir.   Me compraram um fusca velho, mas muito bem condicionado.  Nada de luxo dizia o Gil, se começa nisso também de baixo.

Me gozavam os companheiros, mas o meu carrinho nunca falhava, eu o chamava de Mané, com ele ia com mãe Nice no candomblé, os garotos cuidavam sempre do meu carro.  Me chamavam de Oribara, eu acabei ficando com esse nome.   Algumas vezes, ao chegar, um dos garotos avançava dizendo, pai Oribara, dê uma olhada pelas minhas coisas.  Eu já sabia que tinha complicações em casa.

No sábado de manhã, era a hora que eu atendia muitos, ajudava pai Gregório, ele mesmo passava alguns para mim, principalmente aqueles que vinham atrás de informação para ganhar dinheiro fácil.   Ele já não tinha paciência para essa gente.   Eu deixava o meu Bara, incorporar esse soltava as feras em cima da pessoa, dizendo que o que deviam fazer era procurar um trabalho, se fosse isso ele conseguia, mas número de loteria, o escambau.

Mãe Nice me contava depois que saiam murchos da consulta.   Mas quando era um caso de doença, eu primeiro examinava a pessoa com meu estetoscópio, se o caso fosse complicado, mandava consultar meu pai na entrada da favela.  As pessoas diziam que podia ser caro, mandava um bilhete, pode ir, é meu pai, não cobra nada.   Mas quando tinha alguma coisa de santo no meio, ajudava ali mesmo.   Se meu pai não podia ajudar, subia com a pessoa, dizia o que tinha, que num hospital, isso custaria uma fortuna, que a pessoa não tinha INSS, o sistema de saúde do governo.    Se podia fazer uma operação espiritual, fazia ali mesmo.

Um dia apareceu um homem fortemente armado, com dois capangas, me perguntou se eu tinha reparo em atende-lo, disse que não, mas que os capangas e as armas ficavam porta fora.

O examinei, meu caro, tens dois problemas, um físico, talvez decorrente do espiritual, chamei uma Yao, mandei lhe dar um banho de limpeza, ela estava com medo dele.  Lhe perguntei por quê?   

Ele é o chefe do tráfico aqui da favela.   Olhei bem para a cara do homem, lhe disse vou te curar, mas tens que me prometer uma coisa, nunca aceitaras garotos vendendo drogas ok.

Isso é um problema meu, me respondeu furioso.  

O encarei, dizendo sim, é teu o problema, levante essa bunda, saia daqui, vá morrer lá com teus capangas.   Ficou me olhando sério, não tens medo de mim?

Nem um pouco, sei que come, cagas, andas como eu. Portanto medo nenhum.

Venha lhe disse, antes de lhe dar o banho, lhe perguntei por sua resposta.

Eu já não permito isso a muito tempo, se tivesse escutado minha avô, nunca teria entrado para essa merda.

Lhe dei o banho eu mesmo, fui rezando ao mesmo tempo.

Lhe dei uma roupa branca, mandei trazerem duas mesas grandes, coloquei embaixo do Iroco, eles vão me ajudar a te curar.

Fechei os olhos deixei que o médico que incorporava fizesse seu trabalho, depois comentaria, que era um caso, eu de olho fechado, ele sentindo minhas mãos lhe cortando, sem nenhuma faca ou bisturi, sentindo que lhe retiravam alguma coisa do estomago.

Agora ficaras dois dias aqui, avise aos teus homens que podem ficar do lado de fora, aqui não podem entrar.    Fiquei ali com ele esses dois dias, mãe Nice, lhe preparou uns caldos para se restabelecer.   Ao final, queria me oferecer dinheiro, muito por sinal, mandei uma Yao, buscar a professora da escola que ficava ao lado do Terreiro, lhe entreguei o dinheiro,  para comprar livros, cadernos para os garotos.

Mas esse dinheiro era para ti, soltou ele chateado.

Meu caro eu não preciso, nem fiz isso por dinheiro, mas estou de olho em ti.

Voltou outras vezes para lhe jogar os búzios.  Estava com problemas, uma outra facção queria seu espaço. 

Estas ficando velho lhe disse, sequer pudeste viver, te consigo aonde ficar, pegue teu dinheiro escondido, abra uma conta no banco com teu nome verdadeiro, te ajudo, mas me faça um mapa de aonde é o esconderijo dos traficantes, que passo para a polícia.

O ajudei, o apartamento que tinha em Copacabana, estava vazio, ele se escondeu lá por um bom tempo.  Os da facção contraria, foram presos, convenci o chefe de polícia a transformar esse local num posto de policiais, numa mais tivemos traficantes.   Exu Bara, logo dava com eles, os expulsando dali.

Quando acabei o curso, passei a ajudar meu pai na clínica, com o dinheiro que tinha herdado, melhoramos o local.  As pessoas só iam para o hospital, se não pudéssemos fazer nada lá.

Meu pai conhecia muitos médicos, a clínica foi aumentando, consegui trazer um dentista, para cuidar dos dentes dos garotos e das outras pessoas.   Quando queriam nos pagar, dizia que deviam dar dinheiro para a escola, agora sustentávamos dois professores.

Uma vez por semana o Gil subia, com algum livro, durante uma hora, lia para os garotos, como fazia comigo quando era criança.  Era divertido vê-lo fazer as muitas vozes dos personagens, um verdadeiro conta contos.

Lhe disse que era um Griots, que devia contar também a história dos Orixás, para que os meninos soubesse, quem os protegia.

Agora tinha menos tempo para a praia, se no domingo fazia um bom dia, ou mesmo chovia ia fazer meu surf, recarregar baterias como dizia.

Um dia me apaixonei, me cruzei com um francês que estava de férias, alguém lhe emprestou uma prancha estava fazendo surf, mas uma outra prancha lhe alcançou, o salvei como dizia ele,  fiz os primeiros socorros, quando chegou a ambulância, estava bem.

Dias depois apareceu lá em casa.   Eu estava saindo para a clínica, disse que ia junto assim conhecia essa parte do Rio, fomos conversando, nesse dia tínhamos problemas, o dentista tinha faltado, ele soltou que isso ele podia fazer, pois era dentista em Paris.  Pediu somente uma pessoa que traduzisse o que falava.   Limpava bem os dentes dos garotos, dizia para não comerem tantas porcarias.

Foi ficando, eu me fazia de desentendido, no primeiro sábado subiu depois de atender todo mundo com meu pai, eu já estava no terreiro.   Cuidando de alguma pessoa, ele chegou ficou me olhando de longe, jogar búzios, eu sempre o fazia embaixo da Mangueira.  Ele olhava fixamente a mesma.    Me perguntou quem eram esses que estava ali, olhando, falando comigo.

São espíritos que vivem nesta árvore, lhe expliquei o que era um Iroco.

Quando fui jogar os búzios, vi que ele era filho de Xangô com Iansã, mandei preparar um banho para ele, ele ficou com vergonha quando as Yaos lhe mandaram tirar a roupa,  mas obedeceu.

Quando se sentou, joguei para ele, fui explicando devagar o que devia fazer.

Esperava que me dissesse, que impossível, mas a sua pergunta me pegou de calças curtas, se ele poderia ficar trabalhando na clínica, indo ao terreiro, bem como fazer surf comigo, quero viver uma vida contigo.

Ri, nunca tinha sequer beijado ninguém na minha vida. Vi que o Exu ria, deixa de ser banana, aceita.

Ele disse que tinha que ir a Paris, fechar seu apartamento, bem como pedir demissão da clínica que trabalhava.   Se eu queria ir junto com ele. 

Não sabia o que responder, dinheiro para isso tinha, mas medo de me afastar das minhas obrigações.   Lhe disse, vais fazes o que tens que fazer, quando estiver tudo resolvido, me avisa que eu vou, passo uns dias contigo lá.

Mas antes de ir embora, dormiu uma noite lá em casa, lhe disse que nunca tinha feito sexo com ninguém, que fosse devagar comigo.  Tinha as janelas do quarto aberta, chegava o cheiro da Maresia lá em cima.  Foi emocionante, fiquei apaixonado por ele.  O levei ao aeroporto no meu velho fusca.   Quando me avisou que tinha tudo resolvido, eu já tinha passaporte para ir, fui cagando de medo, mas fui.   Passamos uma semana, ele me mostrando o Paris que amava, foi fantástico.

Quando voltamos, se instalou lá em casa, era um mais na família, em breve falava português, pois era aluno do Gil.    Quem não gostou muito foi minha avó, pois nunca tinha tido na família nenhum gay.  Mas Gil como sempre fez sua cabeça.

Um dia ela não despertou, eu já sabia, mas tinha a obrigação de ficar calado, na última semana me sentava para conversar com ela, relembrando minha infância.   Eu lhe dizia que sem ele, o Gil, nem sabia o que seria. 

Ele ficou desconsolado, pois era o grande amor da sua vida, passou a dedicar mais horas a escola da favela.  Subia conosco de fusca, na escadaria, sempre tinha um bando de garotos lhe esperando.  Ia cobrando se tinha lido o capítulo do livro do momento, iam todos discutindo o que pensavam e sentiam. Quando chegava o final do ano, ele entrava na luta com os professores, para conseguir escola para os que queriam seguir.   Ajudava com tudo, dizia que o dinheiro que tinha era para isso, ajudar, ele não era de luxo.

Muita gente agora, de mais poder aquisitivo, vinha me consultar, eu não cobrava, mas mãe Nice, mostrava o que fazíamos pela escola, com a clínica, as pessoas se quisessem podiam doar dinheiro. Mas colocavam o que queriam numa caixa de madeira, como se fosse um porquinho de economia.

Com isso, meu pai, conseguiu que um amigo, de um hospital, lhe comprasse um scanner, para a clínica. Isso iria ajudar muito, lá fazíamos o mesmo, se a pessoa quisesse dar algum dinheiro, isso era com ela, uma caixinha também.

Jean Coulier, meu namorado, se preocupava muito com os garotos, com os mais velhos, para poder regularizar sua situação, tinha que ter um bom salário, isso resolvemos entre todos.  Breve Gil conseguiu que tivesse documentos brasileiros.   Ele parecia mais um entre todos.

Mas gostava imensamente de fazer surf comigo, erámos completamente diferentes, ele loiro, branco, olhos verdes, eu mulato, loiro, olhos azuis, chamávamos atenção em todos os lugares.

Os garotos diziam que tratar de dentes com ele era fácil, não dava medo.

Ele começou a se preparar para Xangô, quando foi raspado por pai Gregório, esse ficou contente, pois era filho de Xangô também.   Eu lhe ajudei.

Entre nos dois, havia um entendimento impressionante, bastava nos olharmos, para saber o que o outro queria.

Quando fiz 35 anos, estava jogando, para um homem, mas só via sangue, não entendia, pois nada tinha ver com esse senhor, lhe pedi desculpa, alguma coisa está interferindo no jogo.  Jean tinha ido para casa, pois estava com uma gripe forte, lhe tinha colocado no taxi.   Mas a tragédia aconteceu quando desceu do taxi, a polícia vinha perseguindo um bandido, quando uma bala lhe atravessou a cabeça, caiu morto ali mesmo.   Eu no terreiro dei um grito horrorosos, pois vi tudo, não podia acreditar.

Ele não tinha família na França, o enterramos no mausoléu da família, ali no São João Batista, a garotada que ele cuidava, desceu toda, foram de ônibus ao enterro.  Tinha muita gente, nem sabia que ele era tão querido, Pai Gregório, ficou abalado, pois o tinha como um filho, bem como o Gil.

Eu fiquei meio perdido, mas tinha que seguir em frente.  Me dediquei corpo e alma, ao terreiro, ao consultório, tínhamos que encontrar outro dentista, não foi fácil, quando viam aonde era o consultório, apesar de bem montado, queria fazer dinheiro rapidamente.

O pior era ir fazer surf sem ele, as vezes ficava chorando, perdendo a onda perfeita.

Exu me dizia que pelo menos tinha tido uma vida juntos felizes, mas que era coisas que aconteciam.

Mas o dia que o vi no Iroco, fiquei imensamente feliz, ali podia conversar com ele, me aconselhava em muitas coisas.  Pois sabia quem eu era.   Um dia me disse, vai aparecer uma dentista, ao primeiro momento não gostaras, mas lhe dê uma oportunidade.

Realmente, apareceu uma mulher, de seus 40 anos, era francesa também, estava a muitos anos no Brasil, disse que tinha ido de um lado a outro com ONG, mas que no fundo ninguém era sério suficiente.  Que acabava descobrindo coisas que não gostava.

Lhe disse que não erámos uma ONG, mas nos sustentávamos com uma herança que estava aplicada, quanto lhe podíamos pagar.   Ela pediu para ficar um tempo, os meninos a comparavam com Jean, mas teve paciência, em breve dominava todos eles.

Ela tinha um apartamento alugado no Flamengo, mas conseguiu um pequeno ali no Grajau.

Ensinava francês na escola para os meninos.   Ajudava as professoras no que fosse possível, um dia me soltou, encontrei finalmente o que queria.   Já me caia muito bem.

Se dava muito bem com meu pai, quando estava livre ajudava a ele.    Acabaram indo viver juntos lá em casa.   Era muito mais jovem do que ele, mas se entendiam de maravilha.

Ela não tinha mais idade para ter filhos, mas adotaram uma garota que era uma excelente aluna dela, lá do morro.   A família era imensa, não conseguiam manter todos, concordaram que a filha fosse adotada por eles, dois.

A garota me adorava, me chamava as vezes de Ernesto, outras vezes de Oribara.

Um dia saindo do apartamento, encontrei com minha verdadeira irmã, riu quando viu que ia entrar no carro.   Veio me perguntar se não podia ajudar seu filho, precisava que fizessem um trabalho para ele, para conseguir um emprego, para ganhar muito, sem ter que trabalhar tanto.

Ri, sinto muito, mas não faço essas coisas.

Foi quando soltou que eu tinha matado a mãe dela, outras sandices no gênero. Entrei fusca, me mandei.   Comentei com meu pai, o assunto. Tornamos a conversar a respeito.   Ela nunca tinha aceitado o casamento da mãe dela.

Dias depois apareceu um rapaz no terreiro, disse que queria conhecer o tio dele, que tinha colocado sua mãe no seu devido lugar.

Ela quer, porque quer que eu seja um funcionário público, odeio a ideia, sou músico, não gosto nem de imaginar trabalhando numa repartição pública.

Joguei os búzios, vi que trabalhava com percussão, passou a ser, Ogan, tocava os atabaques justo como gostava o Exu.   Este o ajudou.

Ela tornou a aparecer furiosa, como eu podia ter feito isso, era para me vingar dela. 

Minha irmã, foi ele quem veio aqui, nem sabia que era teu filho, a escolha foi dele, não minha, é um homem adulto, pode escolher o que queira de sua vida.

Aos domingos, vinha fazer surf comigo, logo se apaixonou por uma dessas garotas, que ficam seguindo os surfistas, me perguntou o que eu pensava.   Lhe respondi, perguntando o que ele queria.

Conforme a resposta fui franco, então estas no barco errado.   Ela pensava que ele vivesse no apartamento que vivíamos nos, quando lhe disse que não, que era meu, não dele, simplesmente tirou o corpo de fininho.  

Não se preocupe, logo aparecera alguém que te ame verdadeiramente.   Escutava muito o Gil, esse insistia que entrasse para a escola de música, tanto falou que ele acabou entrando para dois cursos.

Houve um hiato de paz, em que todos conseguiam fazer seu trabalho, Oribara, cuidava de todos, a clínica funcionava bem, seu pai e Jeannete se relacionavam bem.   Ela foi chamada de surpresa ao consulado francês, foi sem saber por quê.  Dizia que a anos não tinha notícias de seus familiares, acreditava que tivessem mudado de cidade.

Era justamente isso, uma tia cuidava de um irmão que tinha, nasceu quando ela basicamente era adulta, quando saiu do pais, ele era um garoto, dava muitos problemas, era autista. Mas seus pais achavam que ela tinha que viver sua vida.

O jeito era ir busca-lo, meu pai foi junto, nunca tinha saído do pais, foi toda uma aventura, demoraram mais tempo, pois além dos papeis que tiveram que resolver, estava o pior ganhar a confiança do garoto, ou melhor um rapaz de uns 16 anos.

Quando chegaram, fui busca-los, no aeroporto, para surpresa de todos, foi direto em minha direção me abraçando.   Me chamava de Baba, na hora não entendi, em casa depois de faze-lo descansar, pois não queria sair do meu lado.   Mãe Nice que tinha um jeito especial, fez com que tomasse banho, depois comesse.   Jeannete, lhe perguntou como conseguia.

Sei não, soltou, paciência talvez.   Outro que tinha uma paciência incrível com ele, era o Gil.

Ele só queria nós dois, depois que descansou, subi para o terreiro, ele desceu do carro, correu a abrir a porta, em seguida foi até o Iroco, o abraçou, para surpresa de todos começou a falar em Yoruba.  Até que vi com quem falava, com meu Exu.

Ele me disse que ias cuidar de mim, que não me preocupasse.   Ou seja, simplesmente ele conseguia ver os orixás. Estendia a mão a cada um, quem olhasse de fora, via somente sua mão estendida, mas os orixás o abraçavam.

Estava feliz, passou a ser como meu filho, ao mesmo tempo minha sombra, aonde eu ia, ele ia atrás, bem como mãe Nice, que conseguia que tomasse banho logo pela manhã, depois comesse direito.  Tinha lhe feito um exame estava meio desnutrido.

Mas o melhor, quando o levei comigo para surfar, parecia que sempre o tinha feito.  O mar era para ele como sua casa.   Não permiti que os outros surfistas fizessem gozação com ele.

Josi como o chamávamos, ao contrário do esperado, começou a falar, a conversar, conseguia ter um vocabulário, imenso.   Falava com Jeannete, conversava sobre a tia, que basicamente o tinha criado, quando o levamos a uma escola, a professora se surpreendeu, pois sabia ler e escrever corretamente, agora iam lhe ensinar português.   Não sabemos se por associação, mas uma professora negra se tornou sua mentora, aprendia tudo com ela.

Eu o levava, depois mãe Nice ia busca-lo, no verão ao meio-dia, fazíamos um pouco de surf, ele chegava em casa eufórico, se as ondas tivessem sido boas. Outra pessoa que ele adorava era a mulher do João da portaria, a Dejanira, essa tinham uma paciência imensa com ele.  Um dia o levou a feira, foi lhe ensinando em português o nome de todas as frutas e legumes.

Voltou feliz da vida, foi repetindo para mãe Nice tudo que tinham comprado.   Adorava as frutas tropicais.

No sábado, quando me levantava, já estava em pé, vestido de branco para ir para o terreiro, lá ia direto para o Iroco falar com os seus amigos.   Depois se sentava ao meu lado, quando eu dizia que a pessoa devia tomar um banho de descarrego, se fosse homem, ele mesmo acompanhava para isso.  Nunca o vi fazer uma brincadeira com isso.   Um dia apareceu um homem muito perturbado, quando pedi que tomasse um banho se revoltou,  depois escutamos uns gritos, tinha avançado em cima do Josi, quase cai de porrada em cima dele.

O homem soltou que adorava jovens assim perturbados, para abusar.   O escorracei do terreiro, agora tinha que tomar cuidado, pois as vezes o via espreitando o Josi.   Avisei a polícia, fiz  uma denúncia por acosso.    Mas como sempre no Brasil, essas coisas não funcionam.

Não o deixava sozinho nem um minuto, pedi aos orixás que o protegessem.  Um dia ele estava limpando a parte de baixo do Iroco, retirando as oferendas antigas, o faziam muito sério, com toda dedicação possível,  eu estava jogando búzios para uma senhora, só escutei um grito, corri, o homem tinha entrado, tentado agarrar o Josi, mas algo aconteceu.  O homem estava aterrado, do chão olhava para cima gritando, tirem esse negro de cima de mim. Chamei a polícia, não ia dizer que o Exu, o tinha jogado longe além de estar com o pé no peito dele. Como ele falava que o negro feio tinha um pé no seu peito, gritava como um louco, ele vai me matar.  Os policiais o deram por louco, o internando.  Cada vez que ele ficava melhor o Exu lhe fazia uma visita, dizia que tinha sido o único jeito de o afastar dos jovens.   Disse que ele abusava de rapazes com alguma síndrome, para poder controlar.

Um dia no Pinel, aonde estava, tentou abusar de um jovem, esse era muito forte, arrebentou sua cabeça.   Tinha ido mexer com um que tinha problemas de violência.

Josi, só disse depois, tenho que agradecer aos meus amigos, me defenderam.   Fez ele mesmo tudo, arrumou num alguidar, frutas para os orixás.   No terreiro nunca havia matanças, nada do gênero.

Quando aparecia alguém que pedia para fazer uma matança para seu santo, eu o convencia a fazer outra coisa mais simples.

Agora Josi, basicamente sabia quando eu estava jogando, se ia recomendar algum banho, ou mesmo oferecer ervas para a pessoa colocar na sua casa.  Quando me dava conta, lá estava ele com um amarrado já das ervas.

Vi que prestava atenção no jogo.   Comecei a lhe perguntar o que via, mas o fazia em Yoruba, ele me respondia perfeitamente.   Falei com pai Gregório, ele se ria muito, esse garoto promete.   Um dia me disse que queria fazer uma faculdade, tinha acabado seus estudos, lhe perguntei o que?

Sabe Oribara, quero falar perfeitamente o Yoruba, devíamos ir a Africa para aprender direito.

Tirei umas férias, fui com ele, além de meu pai, Jeannete, fomos a Nigéria, recomendados por pai Gregório.  Gil queria ir, mas a idade lhe pesava, ficou com a mãe Nice.

Ficamos uns dois meses, o mais interessante, que ele entendia os que falavam acrescentando um estalo com a língua, ou uma letra a mais na palavra, as traduzia perfeitamente.

Os professores ficaram intrigados, quando percebiam que ele era autista, mas se desenvolvia perfeitamente no meio dos Orixás.

Um dia corrigiu um babalaô que tinha entendido errado o que o Orixá tinha falado.  Este a princípio não gostou muito, mas o Orixá lhe chamou a atenção, que o garoto sim tinha entendido certo.

As vezes até a mim, corrigia, eu aceitava de bom grado isso, me explicava o que significava a palavra.

Um dia me disse que seus sonhos, tinham sido realizados, estávamos os dois fazendo uma série de exames médicos, pois sempre os fazia, agora incluía ele comigo.  Enquanto esperávamos o resultado para dias depois.  Me soltou isso.   Graças a ti e aos Orixás meus sonhos se cumpriram, já não tenho nada a fazer aqui.  Vim pagar uma dívida, só não sabia que sairia ganhando.   Na hora não entendi, mas no dia seguinte achei estranho, pois ele sempre me chamava para dizer que o banheiro estava livre, que estava atrasado, cheguei a seu quarto, como que dormia placidamente.  Tinha morrido durante a noite.  Inclusive isso, tinha previsto sua morte.   Quando me chamaram para o resultado dos exames o médico disse que tinha uma atrofia no coração, que devia ter sido operado a anos atrás.   Mas claro era tarde.

Mais uma vez fiquei abalado, pois era a pessoa mais cerca de mim, era o filho que nunca teria.   Mas abalado mesmo ficou o Gil, o tinha como outro neto.  Além de não ter idade mais para esses sustos.   Não ficou deprimido, porque para ele a morte era um descanso, estava beirando já os 100, lhe era muito difícil ir a escola contar seus contos para a garotada, cada vez mais estava agarrado comigo.

Eu chegava, me chamava para sentar com ele na biblioteca, todos os meses, me fazia ouvir um balanço do dinheiro aplicado, me explicava, como dizendo, um dia terás que tomar a frente disso.   Eu ficava impressionado com a sua lucidez.  Nos dias que estava de baixo astral, pela perda do Josi, me consolava.  Eu já perdi tanta gente, mas o que mais me tocou foi perder tua avó.   Com ela eu tinha um ombro para me apoiar.

Embora soubesse que nunca lhe faltaria nada, colocou na cabeça de se casar com a mãe Nice, lhe explicou mil vezes que era para que ela tivesse sua pensão de aposentado.  Falou tanto que ela aceitou.  Se casaram pelo civil, mas ela continuou vivendo no pequeno apartamento na dependência de empregados, dizia que não precisava de muito.

Mas quando ele morreu, foi sem querer um bofetada na cara de todos, pois estávamos acostumados com ele, estava me recuperando da morte do Jose, mais essa paulada foi demais.

Conversei com os Orixás, tirei uns 15 dias, não queria viajar, mas sim relaxar.   Passei basicamente esses dias todos na praia fazendo surf.

Fomos chamados pelo seu advogado, mas sem muitas surpresas, ele em vida tinha passado o apartamento para meu nome, eram mais coisas que deixava para a escola, dinheiro para que ela se mantivesse.  Sua grande preocupação tinha sido sempre o depois, quando esses garotos entrassem na secundaria, os poucos que chegavam a Universidade.   Sempre tinha ajudado a todos.   Deixava meu pai bem como a Jeannete a controlar tudo isso.

Para mim deixou uma carta belíssima, falando que fui o filho, o neto que ele sempre quis.

Jeannete quer queira quer não tinha se apaixonado pelo irmão, embora a filha dos dois ia crescendo, amadurecendo, sentia a perda do irmão que nunca conseguiu se aproximar totalmente, como eu consegui.

Um dia saindo da praia, tinha estado ao longe, vendo uma pessoa de roupas normais, com um chapéu na cabeça, ali parado na sombra de uma árvore.   Quando sai, se aproximou de mim.

Perguntou se eu era o Ernesto da Silva, que tinha sido amigo de Jean Coulier.

Sim, por quê?

Ele foi meu melhor amigo, quando vocês estiveram na França, eu trabalhei para o exército no Mali, então não pude vê-lo, mas me escrevia constantemente, falando de ti.   Após todos esses anos, dei baixa no exército, resolvi ver o que tinha apaixonado meu amigo neste pais.

O convidei para ir até em casa, falava um português arrastado, mas quando viu a Jeannete, logo soltou-se, a conhecia.   Ele tinha feito universidade com o Jean, ficaram amigos inseparáveis.    Mas ele para sobreviver, entrou para o exército, como médico.

Ficou encantado com a clínica que tínhamos, quando lhe perguntei aonde iria no Brasil, me soltou na cara, eu só vim te conhecer e o que fazia meu amigo aqui.

Subi com ele até a escola, depois o levei ao terreiro para conhecer pai Gregório.   Ele ao entrar ficou olhando o Iroco, que pensei, essa árvore realmente atraia todo mundo.  Foi até ela se inclinou, ficou ali rezando, numa língua que eu não conhecia.    Logo vi sair da árvore, um orixá diferente, tinha a cabeça mais alongada.

Depois me explicou que tinha ficado tanto tempo no Mali, pois além de trabalhar para o exército, tinha um auxiliar ao que ensinava tudo que podia, que era do povo Dogon, na primeira oportunidade me levou até eles.  De ir de turista, passei a ir de médico, atendendo o que fosse possível, eles me iniciaram no contato com os espíritos.

O que me acompanha, é um dos espíritos de Sirius, o planeta que veneram.    Me disse que um dia eu devia vir te conhecer, para encontrar o que necessitava na minha vida.

Os dois tinham largas conversas, regulavam de idade, acabaram se apaixonando um pelo outro.   Garcez, como se chamava dizia o Jean falava nisso, que essa paixão nasceu no momento que te viu, comigo foi igual, quando saíste da água, pensei, ele é um deus de Sirius, a agua é teu elemento.

Ficou vivendo comigo, me ajudando na clínica, principalmente quando meu pai foi se afastando gradualmente pois reclamava que estava ficando velho, precisava descansar, depois tivemos que conseguir outro dentista, pois a Jeannete queria ficar ao seu lado, vendo a filha deles crescer.

Os dois nos tornamos unha e carne, nunca nos largávamos, estava sempre ao meu lado, era meu outro eu.  Assim seguimos até hoje.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

No hay comentarios: